“A escravidão perdurou durante muito tempo e ainda sofremos o impacto dessa mancha em nossa história”, declara Danielle Cleres

Danielle Cleres (no meio) com amigos na UFRJ (2018)

No último dia 13 de maio completou-se 130 anos da Abolição da escravatura. O uso de escravos começou desde cedo no Brasil Colônia. Pelo menos 5,5 milhões de negros africanos foram trazidos à força para trabalhar na colônia ultramarina portuguesa. Durante mais de 330 anos (1550-1888) não somente adultos, mas também crianças e mulheres negras foram exploradas pelos portugueses em trabalhos braçais, em lavouras de café, na extração de pedras preciosas nas Minas Gerais e em Mato Grosso, em trabalhos domésticos e na venda de mercadorias nas ruas dos grandes centros urbanos. Para coibir fugas e punir negros que cometessem delitos a policia imperial punia os rebeldes com chibatadas – primeiro em praças públicas, e depois em locais fechados. Foram mais de três séculos de intenso sofrimento, em que os negros se viram privados de tudo, e principalmente de suas liberdades.

A Abolição da escravatura não melhorou muito a situação dos negros porque não foi acompanhada por contrapartidas do agora governo republicano. Com  a vinda de trabalhadores europeus para trabalhar nas lavouras de café do Vale do Paraíba (SP) e em outras regiões agrícolas, e no estabelecimento de muitos destes nos grandes centros urbanos, restaram poucas alternativas de trabalho para os negros libertos. Sem trabalho, acesso à educação pública, e moradia, muitos libertos tiveram de ocupar as periferias das grandes cidades, e no Rio de Janeiro ficaram conhecidas as “favelas” – estas inicialmente ocupadas por negros que não encontravam espaço para estabelecerem-se nas áreas planas da cidade. O surgimento das favelas é o primeiro grande símbolo da exclusão social brasileira, e uma prova de que a Lei Áurea falhou ao não garantir aos negros libertos acesso à educação e trabalho.

Com a ascensão do metalurgico Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, em 2002, os negros e os demais espoliados pelo sistema capitalista passaram ter maior representação no cenário nacional. Foi emblemática a criação do Ministério da Igualdade Racial, e, na gestão de Aloísio Mercadante no Ministério da Educação, as cotas raciais – que começaram a ser usadas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2000 – passaram a ser uma política de Estado, um mecanismo público de inclusão de negros e indígenas em cursos superiores. Houve um grande avanço neste período, apesar de que as chagas da escravidão ainda permanecem na sociedade brasileira. “A escravidão perdurou durante muito tempo e ainda sofremos o impacto dessa mancha em nossa história”, lembra Danielle Cleres. Mestra em Linguística pela UFRJ (2018), especialista em Língua Portuguesa e Licenciada em Letras pela UERJ e membro da Igreja Batista do Calvário de Niterói, Danielle comenta nesta entrevista sobre a atual realidade dos negros e as cotas raciais. Acompanhe.

Somos Progressistas. A escravidão é uma chaga na história da humanidade, não apenas nos países ibéricos. O Brasil foi um dos principais destinos de escravos e, após a Abolição, continuou tratando os negros como indivíduos de segunda classe. Passados quase 130 anos da Lei Áurea, o que mudou durante este período? Os negros e as negras continuam à margem da sociedade, ou tivemos avanços?

Danielle Cleres. Em minha percepção, pouca coisa mudou. A começar pela própria Abolição da escravatura: o Brasil foi o último país do continente americano a erradicar a escravidão e, ainda assim, só o fez por imposição da Inglaterra. Nós, os negros, estamos nos piores indicativos de salário, empregabilidade e escolaridade. Ainda que estejamos no mesmo nível de escolaridade exigido para uma função, não seremos nós os escolhidos. Como educadora, percebo que a grande maioria de alunos nas escolas públicas é de negros e, coincidentemente, não serão eles os aprovados na prova do Enem.

Somos Progressistas. Em sua recente participação no programa Roda Viva, o presidenciável Guilherme Boulos fez alguns comentários com relação à situação dos negros no Brasil. Boulos destacou que o “racismo é um problema estrutural”, e que são os negros as principais vítimas de um sistema desigual. Neste dia 13 de maio, qual é a sua perspectiva de futuro com relação aos 54% de negros brasileiros?

Danielle Cleres. Costumo provocar nos meus alunos a seguinte reflexão: “Como vocês acham que foi o dia 13 de maio de 1889?” Se hoje, em pleno século XXI, a situação dos negros continua sendo desfavorável, somos tratados como cidadãos de segunda classe, imagine naquela época. A escravidão perdurou durante muito tempo e ainda sofremos o impacto dessa mancha em nossa história.

Somos Progressistas. Durante quase 400 anos o ensino no Brasil esteve subordinado aos ditames da Igreja Católica Apostólica Romana, por meio da Companhia de Jesus. Durante todo o século XIX poucos brasileiros tiveram acesso às escolas públicas, sendo, em sua ampla maioria, brancos e católicos. Protestantes e negros não tinham acesso ao sistema educacional. Em sua opinião, a atual situação dos negros não se dá a partir desta exclusão educacional? Há uma dívida histórica a ser considerada?

Danielle Cleres. Percebo esta relação claramente. Quando a Língua Portuguesa fora oficializada por Marquês de Pombal, não somente as línguas indígenas foram levadas ao submundo, mas também as influências de matriz africanas foram renegadas. Como o acesso à educação fora negado, é presumível que as gerações futuras teriam um impacto negativo de acessibilidade educacional. Não é à toa que ocupamos em menor número os bancos universitários e temos empregos de menor remuneração.

Somos Progressistas. Ainda com relação ao século XIX, o médico e membro do Museu Afroparanaense, Nizan Pereira desenvolveu uma pesquisa sobre os mecanismos que levaram os negros a serem excluídos do sistema educacional. Em entrevista ao jornal Gazeta do Povo, Nizan Pereira lembrou que a Constituição de 1824 previa que a educação era um direito de todos, inclusive dos “libertos”. A Constituição de 1989 também prevê que a educação é um direito de todos. Tem sido assim mesmo?

Danielle Cleres. Depende de qual educação estamos falando. A educação pública é garantida constitucionalmente. Só que a educação básica, que compreende desde a Educação Infantil até o Ensino Médio, não corresponde a uma boa qualidade, salvo os institutos federais, cujo acesso se dá por concurso e aí temos outra exclusão: quem são os alunos destes institutos? Se o acesso é por concurso, percebe-se que há uma “indústria” lucrativa dos preparatórios. Esse mercado é alimentado por esta crueldade: quem mais precisa não tem acesso. E tem-se outro ciclo ruidoso: famílias com recursos investem em boas escolas para que, à época do vestibular, os filhos possam ingressar na educação superior pública. É um disparate, mas que tem se perpetuado e se naturalizado em nossa sociedade.

Somos Progressistas. Situação dramática relatada pelo médico e pesquisador da educação de negros nos períodos colonial e republicano, Nizan Pereira descreve a maneira como os negros eram tratados no Brasil. Segundo ele, no Rio de Janeiro proibia-se ir à escola os que tivessem doença contagiosa e os negros, “ainda que libertos”. Não apenas havia um claro preconceito com pessoas portadoras de doenças contagiosas – e a AIDs sequer havia surgido – e com negros. Que podemos dizer a respeito?

Danielle Cleres. O século XIX foi marcado pela “eugenização” da sociedade brasileira. Da mesma forma que a ciência avançava no que se refere às pesquisas e ao tratamento dispensado à profilaxia, o Brasil era palco de pesquisas científicas europeias que visavam descobrir o resultado de tanta miscigenação. Logo, associavam doenças à pobreza e esse raciocínio culminava na questão do negro brasileiro, uma vez que sempre foi trabalhador braçal e que vivia em condições insalubres e subumanas. O negro brasileiro se acostumou a viver à margem da sociedade e sem acesso aos serviços públicos preventivos. Posteriormente, através da Belle Èpoque, Pereira Passos reformulou o layout urbano da então capital brasileira, o Rio de Janeiro, e “varreu” para longe do centro urbano esses moradores, trabalhadores e “libertos” que “enfeiavam” a capital fluminense. Como resultado, foram criados cortiços e favelas que propiciaram a fomentação de doenças infectocontagiosas, como tuberculose, por exemplo, frequentemente associada à boêmia, mas que nasceu das costelas de um aparelho público seletivo.

Somos Progressistas. Pereira observa ainda, em sua participação na reportagem da Gazeta do Povo, que até 1888 os negros haviam sido privados do direito de estudar, e com a proclamação da República os beneficiados pela Lei do Ventre Livre eram tidos como “ingênuos” e “cegos intelectuais”. Sendo a maioria dos negros analfabetos, sofrem novo baque ao serem proibidos de votar. Por quase 100 anos os analfabetos foram proibidos de votar, situação revertida em 1985. Qual é a sua análise deste processo?

Danielle Cleres. Acredito que apenas proliferou o analfabetismo político. O cidadão, ainda que seja analfabeto, deve ser consciente de seu papel na sociedade. Isso inclui seus direitos e deveres. Ora, se uma pessoa é privada de seus direitos, como irá exigir o cumprimento dos deveres das autoridades? Oferecer o direito ao voto sem que houvesse a contrapartida  — ensino de Sociologia, Filosofia e Cidadania — , apenas contribuiu para a venda de votos e ingênuos políticos, quando não analfabetos sociais. Não é à toa que vemos o crescimento de eleitores de políticos perigosos e aproveitadores como Jair Messias Bolsonaro e a manutenção das oligarquias políticas. São essas mesmas famílias que se beneficiaram da política cafeeira e hoje são rentistas e aproveitadores da política, em todo o País.

Somos Progressistas. Em sua participação no livro “História da Educação do Negro e Outras Histórias” (2005), Marliéria do Santos Cruz cita Jorge Nagle ao dizer que “a história da educação brasileira não têm contemplado a multiplicidade dos aspectos da vida social e da riqueza cultural do povo brasileiro”, o que inclui a multiplicidade cultural dos afro-brasileiros. A  Lei 10.639/03, que prevê o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana surge com o objetivo de dar voz e vez à multiplicidade?

Danielle Cleres. Eu acredito que a implementação da lei 10.639/03 depende de um projeto político-pedagógico que une os demais saberes da educação. É necessário que se fale da escravidão, mas não somente disso. E os ganhos culturais que os negros contribuíram para a construção da sociedade brasileira? Se não fica parecendo que o povo negro foi só coadjuvante neste processo. Não. Nós temos parte na história do Brasil, fomos um povo subjugado, mas trouxemos ganhos para a língua, cultura e a constituição de um Estado. Acho penoso que ainda seja necessário que o braço da lei para que a nossa história não seja esquecida, mas, já que esse é o meio atual, então vamos fazê-lo com propriedade.
 
Somos Progressistas. Em 2001, ainda na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, o Estado brasileiro participou da III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, fórum em que a escravidão e o tráfico de escravos foram considerados crimes contra a humanidade. O Estado brasileiro, segundo Elaine Cavalheiro, deu total apoio ao fórum e, paralelamente, relembrou seu compromisso com ações voltadas à superação das desigualdades entre brancos e negros na sociedade. Vê como positiva a participação do Estado brasileiro neste e em outros encontros? Ainda: é suficiente para que possamos superar séculos de desigualdades e racismos?

Danielle Cleres. Acho que a participação do Estado brasileiro neste fórum foi positiva, mas não deve ser resumida apenas a este fórum. O Brasil não deve apenas participar, mas deve ter uma ação protagonista nisso. Nunca será suficiente enquanto tivermos, nos indicadores públicos, índices alarmantes de educação e violência ao povo negro. O racismo ainda caminha nesta esteira social: é uma via de mão única. Quanto menos definição de uma política pública que atenda a esses problemas tão característicos da sociedade brasileira, maiores serão os números inerentes à desigualdade social.    

Somos Progressistas. Tido como um dos maiores escritores do século XX, Monteiro Lobato penetrou os lares de milhares de brasileiros por meio de uma adaptação televisiva de sua série de 23 livros da história do “Sítio do Pica Pau Amarelo”. A série, adaptada pela TV Globo, fez parte da realidade de milhares de crianças e adolescentes por longos anos, assim como continua sendo o seriado A Turma do Chaves, transmitido pelo SBT. Apesar da inegável contribuição de Lobato à cultura brasileira, ele tem sido denunciado como “racista”. Na sua experiência pedagógica, você vê bases para afirmar que Lobato era racista? Se há bases, tal impede que as literaturas do autor sejam estudadas nas escolas?

Danielle Cleres. Quando estava cursando a licenciatura em Letras, na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, eu tive a oportunidade de ser bolsista de iniciação científica em um projeto que mergulhava no século XIX para desvendar a relação existente entre a higiene e a educação infantil. Para elaborarmos tal pesquisa, mergulhei em jornais fluminenses desta época e tive acesso a investigações que comprovavam a relação entre o discurso médico-científico e o racismo. A eugenia fora uma prática comum no Brasil, inclusive na literatura e um destes expoentes foi o Monteiro Lobato. Antes de ele despontar como um autor de livros infantis, fora um industrial que escrevia para jornais do interior de São Paulo e trocava correspondências com outros adeptos desta crença racista que defendia a ”limpeza” da sociedade brasileira com imigrantes europeus e japoneses, ou seja, eliminar, ou ao menos, diminuir a contribuição negra na miscigenação brasileira. Como professora de Língua Portuguesa e respectivas Literaturas, não deixo de mencionar a biografia de Lobato e sua contribuição para a Literatura Brasileira, mas enfatizo que as obras de cunho nitidamente racista, como o livro “Caçadas de Pedrinho” devem ser abolidas como leitura recomendada ao público infanto-juvenil.  

Somos Progressistas. Desde que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse da Presidência da República, em 2003, seu governo desenvolveu uma série de medidas de combate ao racismo, inclusive com a criação do Ministério da Igualdade Racial. A Lei 10.639/03, aprovada em seu primeiro ano de governo, enfrentou de frente a problemática do racismo e instituiu o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, o que inclui as religiões de possessão. Outra medida igualmente importante foi a criação das cotas raciais, em universidades públicas e privadas. Na sua percepção enquanto docente, qual é a importância das cotas raciais e como responder aos críticos e favoráveis à meritocracia?

Danielle Cleres. Constantemente sou questionada, pelos meus alunos, sobre a questão das cotas sociais. A leitura que faço da percepção destes alunos é de que as cotas foram entendidas como uma forma de facilitação e privilégio. Um erro. Sou 200% favorável as cotas. O discurso da meritocracia é falacioso no Brasil. Se não é ofertado uma educação pública de qualidade a todos, quem tem acesso a essa educação ideal não é um esforçado ou merecedor, e sim, um privilegiado.  Enquanto tivermos a comprovação, pelos índices de pesquisa, de que a população negra, embora seja maioria, figura na base da pirâmide social dos que menos têm acesso à educação superior, empregos melhores e serviços básicos de infraestrutura, medidas de compensação, como as cotas raciais, se farão necessárias.

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